(Horas antes), estava uma manhã clara, com poucas nuvens no céu. Soprava uma brisa suave ajudando a amenizar o calor. Nesta época do ano, em Cedral, interior do Maranhão, o clima é de muito calor quando não há nuvens escondendo o sol. Mas é época de chuva e a qualquer momento o vento pode trazer nuvens negras.
André levantou-se da cadeira, subiu em cima dela e contemplou o horizonte. Tentou olhar o mais longe possível em todas as direções. Cerrou bem os olhos. Nada de chuva. Norte, sul, leste ou oeste não dava sinais do contrário.
– Se continuar assim a viagem poderá ser tranquila. – pensou ele. Sentou-se novamente na cadeira. Avistou ao longe um amigo e o convidou para lhe fazer companhia.
– Vem cá, Cidão. Senta aqui e me acompanha neste chope.
– Com prazer. – respondeu-lhe. Cidão nascido e criado em Cedral. Já com 38 anos de vida e muitas experiências é um homem baixo, peludo, principalmente nas costas, cabelo com um penteado de rabo-de-cavalo atrás e na frente um começo de calvície. É popular na cidadela e nos povoados que a rodeia, pois é um dos DJ´s da radiola de reggae que anima os festejos do lugar. Logo quando André chegou em Cedral, Cidão tratou de fazer amizade com ele e se tornaram bons amigos. Cidão não escondia sua afeição e nem sua tristeza por ver seu amigo regressar para a capital, a sua cidade natal.
– A lancha sai hoje a que horas?
– Sairá às onze e meia. Ainda temos hora e meia pra conversarmos amigo. – André estava bem mais maduro, desde que chegara na cidade conviveu e viveu com muitas pessoas, passou por situações que jamais pensara que iria passar, situações de tristeza, desagrados, de saudades; encontrou felicidade onde nunca teve pistas que iria achar, em coisas simples, muito simples, como simplesmente aprender a preparar sua própria comida. Também teve que batalhar muito para conseguir um pedacinho de terra e plantar sua roça. Teve que levantar sua casa de pau-a-pique e telhado de folhas de ariri com suas próprias mãos e com a ajuda de seu amigo Cidão e outras amizades do povoado; teve que pescar durante muitas luas cheias de madrugada. Passou por experiências até então insuspeitáveis para a sua antiga criação de garoto pobre, mas bem educado da capital. Caçava às vezes, trabalhava em fazendas de boi búfalo próximas dali. Ganhara algumas cabeças de gado quando salvou um fazendeiro de morte certa. O fazendeiro estava sendo atacado por uma onça, já tinha desistido de lutar quando André alvejou a selvagem com um tiro certeiro salvando-lhe a vida. Por agradecimento o fazendeiro deu-lhe algumas cabeças de gado. André trocou algumas pelo pedacinho de terra onde fez seu sítio e sua casa, outra por madeira e ainda conservava duas vacas e um boi.
– Já estou com saudades, te confesso. Você é uma grande pessoa. Logo quando cheguei você foi o primeiro a me cumprimentar numa cidade onde não tinha parentes nem conhecidos.
– Eu também fui logo com sua cara, André. Quando te olhei desembarcando logo vi que você seria bom trabalhador e bom companheiro.
– Pena que tenha que voltar para São Luís, mas com certeza em menos de três meses estarei de volta. Enquanto isso eu queria te pedir um favor.
– Qual?
– Que você tomasse conta do sítio e da casa enquanto eu estiver fora.
– Claro, será um prazer.
André levantou-se da cadeira, enfiou a mão no bolso da calça jeans que trajava, retirou uma chave com aparência nada moderna e entregou-a para Cidão. Sentou-se, sorveu um pouco de cerveja e ficou a contemplar a pracinha pensativo. Cidão rompeu o silêncio:
– André, não querendo me meter em sua vida, mas o que você vai fazer em São Luís?
– Vou apenas resolver um problema pendente do qual venho fugindo há anos.
– Que problema, posso saber?
André sorveu outro gole de cerveja, tirou do bolso da camisa xadrez uma carteira de cigarros, acendeu um, deu um trago profundo, olhou novamente para a pracinha, dessa vez fitou o vazio e nada respondeu. Cidão insistiu:
– Desde que você chegou aqui nunca falou de sua terra natal e de sua família ou de amigos que deixara por lá. Parecia até que queria esquecer de onde veio e de repente vai fazer uma viagem de volta dizendo que vai resolver problemas antigos.
Realmente desde que chegou a Cedral André nunca comentou nada sobre sua vida em São Luís.
– Será que eu posso ajudá-lo neste problema? – perguntou. – Você vai dormir onde durante estes três meses?
– Eu ainda não sei. Estou levando alguns trocados da venda do bezerro para me virar.
– Por que você não vai para casa da sua mãe?... – uma pausa – Sua mãe ainda está viva, não está?
– Sim está, e tenho muitas saudades dela. Gostaria muito de revê-la durante esta viagem, mas estou com receio... – confessou.
– Receio de quê?
– Quando vim para Cedral, eu fugi. Não avisei mamãe.
– Então ela deve estar super preocupada achando que você está morto ou qualquer coisa parecida...
– Não. Com certeza, não. Eu escrevo para ela sempre, mas envio cartas sem remetente para que ela não me encontre.
– Por que você não quer que ela te encontre? Você fez algum mau para ela?
– Não... – respondeu baixinho – pra ela não?
– Para quem, então?
Ele deu outro trago profundo, soltou a fumaça e suspirou:
– Vou lhe contar a minha história. Mas te peço Cidão, por favor, não comente isto com ninguém.
– Tudo bem, prometo. – disse fazendo o sinal da cruz e beijando o crucifixo de ouro que carrega no cordão. André sabia que quando Cidão fazia este gesto poderia confiar plenamente na sua palavra.
Começou a contar desde o primeiro dia que foi ao Calígula, lembrou de como seus amigos lhe importunaram para que ele fosse também. Contou todos os detalhes de sua primeira transa. Cidão ouvia atentamente. André não esquecia nada, contava tudo que aconteceu, parecia que ele estava lavando a alma. Falou de seus amigos: Zequinha, Carlos e Bolão. Falou que quando chegara em casa teve que mentir para sua mãe. Confessou-lhe remorso. Narrava todos os fatos. Cidão prestava atenção em tudo, mostrando profundo interesse. Lembrou que o único que não se aproveitou das prostitutas foi o Bolão e por esse motivo marcaram de voltar ao Calígula no sábado seguinte.
André parou de repente a narrativa. Tomou fôlego. Pediu outra cerveja. Ouviu um passarinho cantar bem acima de sua cabeça. Cidão ansiava pelo reinicio com sofreguidão.
–...Então, foi naquele sábado fatídico que tudo aconteceu. Foi neste dia que minha vida mudou para sempre. Quinze de fevereiro de 1992, uma data como a de hoje, esta foi uma das razões que escolhi para viajar hoje... Tudo começou quando... – contou toda a história daquele sábado negro para Cidão que ouvia atenciosamente; de olhos arregalados ouvia o companheiro contar sobre a confusão com a falsa prostituta, sobre a briga com Capitão... André parou novamente, desta vez não para beber, fumar ou tomar fôlego e sim para chorar. Estava aí o motivo que ele não queria contar, entendeu Cidão. Os olhos de André encheram-se de lágrimas que escorriam pelo seu rosto, o nariz pingava úmido, ele soluçava sentindo sua garganta seca e o coração apertado. Cidão tentou sossegá-lo oferecendo o seu ombro amigo, dando tapinhas em sua costa. Conhecia André há seis anos e nunca o viu chorando, com raiva, remorsos ou qualquer outra emoção que demonstrasse insegurança e agressividade. Quase sempre sério, às vezes sorrindo, mas nunca chorando. Cidão entendeu toda a dor de André, mas ainda persistia a dúvida do porquê do regresso.
– Tenho tido dias difíceis aqui em Cedral, posso lhe confessar. Não pela necessidade que passei, mas pela saudade. Pelo receio de que quando voltar não saber como irão me receber, principalmente as famílias de Bolão e Carlos, afinal de contas eu também fui um dos responsáveis...
– Não se culpe assim, André. Você sabe que não teve culpa... Eu só não entendo por que você quer voltar, já que não vai ficar com sua família e vai ficar no máximo três meses.
André tirou todo o ar de tristeza do semblante e ficou sério por alguns instantes. Sentiu o sangue ferver. Este é um segredo que ele não poderia revelar de nenhuma forma para quem quer que fosse.
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